TERROR, POP ART E CONTRACULTURA A história dos quadrinhos, de Bill Gaines a Roy Lichtenstein Por Vladimir Cunha (yoyodine@hotmail.com) Até 1947, o jovem William M.Gaines não passava de um bon-vivant dedicado única e exclusivamente às coisas boas do mundo. Mas só até 1947, pois naquele mesmo ano sua vida mudaria drasticamente após a morte de sua mãe num acidente de barco. Profundamente abatido com a tragédia, seu pai, Max Gaines, resolveu retirar-se dos negócios e passou para o filho a missão de tocar adiante a empresa da família, a editora de quadrinhos religiosos Educational Comics. O único problema é que quadrinhos religiosos não eram exatamente um gênero de sucesso entre a molecada, que preferia as aventuras do Capitão América às adaptações carolas de passagens do Novo Testamento, daí ser compreensível que a Educational Comics estivesse em sérias dificuldades financeiras. Entretanto, o destino de Gaines tomaria um rumo inesperado quando ele cruzou o caminho de Al Feldstein, um talentoso artista freelancer em começo de carreira e que, assim como o ex-playboy, adorava aventuras de terror e mistério. Descobertas as afinidades, a dupla juntou as forças e criou duas histórias: A Cripta do Terror e A Câmara do Horror. E já que pior do que estava não podia ficar, Gaines aproveitou a editora que herdara do pai e lançou os dois títulos no mercado. Nasciam aí os quadrinhos de terror e a lendária EC Comics. A publicação bolada por Gaines e Feldstein, batizada com o apropriado título de Tales From the Crypt, tornou-se um sucesso espetacular entre crianças e adolescentes e motivo de choque para os norte-americanos adultos. Jamais o cidadão comum - classe média, branco, suburbano e fiel defensor do American Way of Life como o caminho mais curto para o Paraíso - iria permitir que seus filhos passassem o tempo lendo histórias sobre aberrações, trapaças, assassinatos, bruxaria, exorcismo e magia-negra. O mundo permitido era aquele idealizado nas pinturas de Norman Rockwell, do garoto loiro de cabelo escovinha, das ceias do Dia de Ação de Graças e das bandeirantes de rosto corado. A América mergulhava no sonho da prosperidade capitalista, numa vida melhor através da química e no seu estabelecimento como superpotência econômica e militar. Encarar o lado feio e bizarro da vida não estava nos planos de ninguém. Exceto da molecada, que, dos cafundós do Arkansas ao centro de Nova Iorque, fazia a fortuna de Gaines comprando qualquer coisa que tivesse o selo EC Comics estampado na capa. Isso aconteceu porque Bill Gaines criou uma identificação imediata com o público ao se apropriar da linguagem radiofônica - todas as histórias eram apresentadas por um narrador, geralmente o Zelador da Cripta, a Bruxa Velha ou o Guardião da Câmara - e também porque arrebanhou um time de artistas de primeira para atingir, nas páginas da revista, o clima de demência que as histórias pediam. Assim como Will Eisner, os desenhistas Jack Davis, Frank Frazetta, Johnny Craig e Graham "Ghastly" Ingels tinham um traço sombrio e carregado de dramaticidade. Houve também tendência em distorcer certas expressões faciais na tentativa de transpor para o papel a loucura interna de cada personagem. Tales From The Crypt impressionava também por sua logomarca ao mostrar a palavra " Crypt " grafada de tal forma que dava a impressão de estar apodrecendo. O sucesso da EC Comics nas bancas, levou Gaines a ampliar sua linha de "produtos". Na esteira do sucesso de Tales From The Crypt, foram lançados The Vault Of Horror, Crime SuspenStories, The Haunt of Fear e Shock SuspenStories. Aproveitando a maré boa, Gaines adaptou as histórias do conhecido autor Ray Bradbury e jogou no mercado Weird Science e Weird Fantasy, publicações que misturavam suspense e terror a uma ficção científica um pouco mais pessimista, semelhante a de escritores como Phillip K.Dick e William Gibson. Não contente em se tornar o novo rei dos quadrinhos - desbancado as HQs de super-hérois, que, depois de Tales From The Crypt, entraram em decadência - Gaines aventurou-se pelo campo do humor. Em 1952 chegava às bancas a MAD Magazine, o mais novo empreendimento da EC Comics, editada pelo escritor e desenhista Harvey Kurtzman. O grande mérito da MAD Magazine trazer para as HQs um humor anárquico, satírico e, principalmente, judeu. Ainda em sua primeira fase - reconhecidamente a melhor de todas - ela destruiu sem dó nem piedade todo e qualquer ícone da cultura de massa norte-americana. Flash Gordon virou Flesh Garden (Jardim de Carne), um brutamontes com zero de QI, e Batman foi transformando em um anão vampiro que vivia tentando agarrar a Mulher Maravilha. São notáveis também as sátiras feitas ao Superman (Superduperman e a charge Supermarket, sobre um supermercado exclusivo para heróis) e as adaptações de contos de fadas, todas elas temperadas por uma certa dosa de perversão sexual. A MAD merece ainda um capítulo à parte sobre sua produção gráfica, pois foi nela que floresceu o talento de Wallace Wood ; Basil Wolverton, especialista em desenhar monstros deformados, e Bill Elder, os responsáveis pela "cara" da fase clássica da revista. Para se ter uma idéia de como a coisa era pesada para época, o slogan da MAD era uma provocação absurda: " MAD Magazine: Humor In a Jugular Vein!! ", frase que, nos anúncios da revista, aparecia escrita sob uma Monalisa deformada criada por Basil Wolverton. A festa duraria pouco e, logo, a década de 50 seria conhecida como um dos períodos mais sem-graça da história das HQs. Apesar de algumas coisas maravilhosas, como Pogo, de Walt Kelly, e Ferdinando, as histórias em quadrinhos sofreram um duro golpe com o surgimento do macarthismo, da paranóia anti-comunista e com a publicação de A Seducao dos Inocentes - livro do psiquiatra Frederic Werthan sobre os "malefícios" das HQs. Entre outras coisas, Dr. Werthan, "provava" que Batman e Robin mantinham um ardoroso caso homossexual: " Constantemente eles se salvam um ao outro de ataques violentos de um número sem-fim de inimigos. Transmite-se a sensação de que nós, homens, devemos nos manter juntos porque há muitas criaturas malvadas que têm que ser exterminadas... Às vezes, Batman acaba numa cama, ferido, e mostra-se o jovem Robin sentado ao seu lado. Em casa, levam uma vida idílica. São Bruce Wayne e Dick Grayson. Bruce é descrito como um grã-fino e o relacionamento oficial é que Dick é pupilo de Bruce. Vivem em aposentos suntuosos com lindas flores em grandes vasos... Batman é, às vezes, mostrado num robe de chambre...é como um sonho de dois homossexuais vivendo juntos". Dr. Frederick Werthan - The Seduction of the Inocents Impelido pela caça às bruxas do Senador Joseph MacCarthy - cujo alvo foi, principalmente, atores, roteiristas e diretores de Hollywood acusados de comunismo - e o livro do Dr. Werthan, o governo norte-americano tentou acabar com todo o tipo de publicação cujo conteúdo fosse considerado "imoral" ou "impróprio". A primeira a dançar foi a EC Comics. Todos seus títulos foram proibidos e a MAD passou a pegar menos pesado em suas sátiras e mudou de formato para poder continuar nas bancas. Outro caso célebre foi a perseguição que o criador de Ferdinando, All Capp, sofreu por causa de uma história sobre os schmoos, um bichinho fictício semelhante a uma foca que se proliferava à velocidade da luz e tinha uma carne deliciosa, além de dar leite e pôr ovos. Na história, os Estados Unidos entram em polvorosa porque ninguém mais queria trabalhar, já que todo mundo tinha um schmoo em casa e não passava mais fome. Por isso, o schmoos foram considerados pelo governo como uma apologia ao comunismo e All Capp teve que tirá-los das aventuras de Ferdinando. O resultado mais triste da paranóia do Senador MacCarthy e do chefe do FBI, J Edgar Hoover, foi a criação do Comics Code, aquele selinho encontrado em todas as revistas comercializadas nos EUA. Sem ele, as publicações de quadrinhos não poderiam ser vendidas, o que levou as editoras a implantar a censura interna, acabando assim com a liberdade de criação de seus artistas. Apesar de algumas coisas legais aqui e ali, as HQs só saíram do marasmo no começo dos anos 60 após o surgimento da literatura beat e das primeiras manifestações da contracultura. Criado em São Francisco, o movimento dos Comix deu um novo impulso criativo aos quadrinhos. Primeiro porque seus integrantes estavam num desbunde total e não estavam nem aí para a rígida moral norte-americana. Segundo porque as revistas dos Comix não eram vendidas em bancas e sim em lojinhas hippies, cujos donos não queriam nem saber se as ditas-cujas tinham ou não o famigerado Comics Code Aproval. É um período marcado pela negação à linguagem formal das HQs. Nos comix, por muitas vezes não havia uma seqüência lógica na narrativa. Uma historia poderia ser interrompida para dar vazão a algum experimentalismo gráfico ou não ter exatamente um roteiro. Poderiam ainda ser ácidas e demolidoras - como as notórias edições de Air Pirates, de Dan O'Neil e Ted Richards, nas quais Mickey e Minie Mouse apareciam fazendo toda espécie de loucuras sexuais - ou simplesmente desagradáveis, principalmente em alguns momentos mais escatológicos da Zap Comix, a primeira publicação underground do planeta. Entre os nomes do quadrinho underground, destacam-se Robert Crumb, Gilbert Shelton, Robert Williams, Skip Williamson e Ricky Griffin, litografista que fez a cabeça de toda uma geração com sua arte psicodélica e posters de Carlos Santana, The Doors e Gratefull Dead. Os comix atraíram também uma parcela considerável de artistas da velha guarda. Cansado da censura do Comics Code e empolgado com o movimento, Will Eisner lança um gênero inédito: as novelas gráficas (Um Contrato com Deus e O Edifício), uma mistura de literatura e quadrinhos com uma linguagem mais madura e bem mais experimental do que a usada na HQ tradicional. Outro veterano a pedir uma vaga no porão do quadrinho underground foi Harvey Kurtzman. À margem da indústria desde a instituição do Comics Code, ele voltou à cena com a revista Help, uma versão ainda mais pirada da MAD Magazine. Junto com ele vieram os bons companheiros de EC Comics Bill Elder e Wallace Wood, que, nesse período, deu ao mundo a memorável My World, uma fábula pessoal sobre a decadência moral dos Estados Unidos.