O Kuduro e nós. Teria mesmo algo a ver? Ku, palavra e não palavrão, parece vir do mais puro vernáculo do Kimbundo (MataKu =nádegas, assento plural de ritaku), principal língua falada em Luanda, Angola (da qual falamos centenas de vocábulos, sem saber - inclusive Ku, certo?) O sentido figurado da palavra é, exatamente, o mesmo que usamos no Brasil: Bunda (palavra aliás, oriunda também do mesmo Kimbundo), literalmente traduzida para o portugês também como nádegas. O sentido da expressão Kuduro poderá ser melhor explicado por um Angolano, mas, ao que tudo indica, significa o que parece: Kuduro = Bunda imóvel, sem rebolar, o que, considerando-se que um dos movimentos fundamentais da dança angolana é o sofisticado rebolado (dos homens inclusive), é muito significativo. Algo como uma dança diferente, supostamente 'moderna', no âmbito das danças tradicionais que, como já disse são, extremamente, rebolativas. Contudo, dança livre que é, no Kuduro também se pode rebolar, é claro, basta querer. Dito isto, o Kuduro, inserido no âmbito da cultura Hip Hop, é uma dança de rua (ou uma street dance, para quem gosta americanismos) Como todos os outros gêneros assemelhados, o Funk carioca e o Kwaito (da África do Sul) é a resposta africana avassaladora influência da indústria cultural de massa capitalista, cujo eixo como se sabe, localiza-se, desde o fim da segunda guerra mundial, na América do Norte. Mas o Kuduro também é um símbolo dos mais fortes, neste momento, da enorme capacidade da resistência cultural das populações não-brancas, do outrora chamado Terceiro Mundo, diante da pressão globalizante, sinônimo evidente de aculturação. Kuduro Checkup No Kuduro angolano - e vejam vocês mesmos que coisa curiosa! - os passos do mix, da fusão com o break, são o mais puro e carioca dos Sambas. Incrível! Acreditem, mas, os Pupilos do Kuduro, e outros kuduristas, quando em conjunto, dançam, quase exatamente, o que a nossa Ala dos Malandrinhos dançava lá naqueles bem passados anos 60. Os braços e as mãos dançam break, mas, da cintura para baixo, bundas e pernas dançam o mais desbragado dos Sambas. Pode? Teria sido aquela minha saudosa rapaziada de Padre Miguel a inventora do Kuduro ? Alguns pesquisadores tentam explicar a estrutura da base rítmica, da batida (beat) do Kuduro por meio de teorias moderninhas ou simplificações que insistem em preconizar a importância, ao nosso ver, exagerada, das tecnologias na criação e na evolução destas danças e gêneros musicais. Os reis da parada seriam portanto os equipamentos eletrônicos (como o já velho Sampler, por exemplo). Apenas uma opinião, mas, é preciso cuidado porque assim, por extensão, o papel do Mocinho poderia ser atribuído a sociedade neoliberal globalizada, ao Capitalismo em suma, e ao estupendo grau de desenvolvimento tecnológico que ele propicia. Besteira. Baita injustiça, sobretudo. Não há nada de novo nesta praia deserta, neste giro do prato de velha vitrola hi fi. O Sampler e sucedâneos são, neste contexto, apenas instrumentos musicais, meios, facilitadores de registro, meros suportes. Se disponíveis estiverem, ferramentas de cultura serão. Se não estiverem, outras ferramentas se inventarão. Aliás, o que um Sampler faz mesmo? Não muda nada. Copia. E haja periferia e miséria para samplear. A grande sacação (e isto vem desde que o mundo é mundo) é, portanto, a capacidade do homem de tirar leite das pedras, resistir sem esmorecer jamais, reinventando linguagens, recriando sempre a partir de dados do cotidiano, subvertendo referências e sentidos comunicativos, extraídos de seu passado mais remoto, cimentando os degraus do presente, sem ilusões de modernidades vãs ou de futuro radiante. Vírus no sistema. O Mocinho verdadeiro desta história- o anti herói - não é a sociedade,mas sim o homem. ---------------------- Inside the Kuduro (em português não ficaria melhor não) Senão vejamos: Em todos os gêneros citados (entre outros), a alma do negócio é um som de caixa e contratempo. É esta a célula rítmica base, a matriz, o DNA, sobre o qual se criará os sons que bem entendermos. Poderia ser um humano baterista lá no fundo, marcando a batida, mas, fica bem mais econômico usar um som gravado. No caso do Kuduro clássico (como ocorre com toda coqueluche pop, as distorções e deformações aparecem rapidamente), a batida copiada (sampleada) parece ser o que se chamava nos anos 70, 80 de Kabetula, um ritmo muito popular em Luanda, semelhante ao Semba, do qual talvez seja uma variação (uma outra corrente afirma, contudo, que o Kuduro é uma variação do Kuzukuta, ritmo popular do carnaval angolano). Ficou tudo em casa, no entanto, porque ambos os ritmos (como a maior parte das danças de negro do Brasil, desde, pelo menos, o século 19), tipicamente urbanos que são, vieram, provavelmente, do Kaduke, espécie de Kuduro surgido na cidade de Ambaça (Mbaka), grande centro urbano e comercial (!) lá pelos idos de 1880 (veja Capello e Ivens), no tempo da colonização portuguesa em Angola Este Kaduke, talvez tenha gerado, a partir do mesmo processo, no Brasil colonial, o Kalundu que, mesclado à danças européias como a Polka e a Mazurka (espécies de danças de periferia brancas, populares na Europa central), deram numa dança popularíssima na Corte brasileira (um Kuduro colonial) chamada de Lundu. Pois não é que o Kaduke, o Kalundu e talvez até mesmo o Jongo formaram talvez, a base principal - coreográfica e musical- do que conhecemos vulgarmente hoje no Brasil como Samba ? Viram só? Kuduro e Samba: Tudo a ver. Fenômeno recorrente, efetivamente, existem manifestações como o Kuduro em todas as periferias do mundo. Decupando a estrutura de todas elas, especialmente no que diz respeito à coreografia, encontraremos, quase que invariavelmente, a seguinte composição: Passos e gestos de Break Dance, fundidos a movimentos de uma ou mais danças tradicionais, tribais mesmo em muitos casos, existentes na cultura local. Alguém já parou para pensar que na violenta e exuberante expressão coreográfica de uma multidão de jovens favelados do Rio, muitos deles portando fuzis automáticos como se fossem lanças, existem passos completamente estranhos ao novaiorquino repertório de movimentos de break original, de, entre outros, James Brown e Michael Jackson ? Há break sim, mas, um pouquinho só. Há desconjuntamento de braços e punhos, movimentos robóticos, como imagens de luz negra intermitente, mas, o que será que significam os outros passos? Ora, é evidente que, olhando detidamente os movimentos de dança deste Funk Carioca, iremos encontrar a mesma filosofia coreográfica do Kuduro, em nosso caso, representada por passos de umbanda e candomblé (ritmos aliás, hoje banidos de algumas favelas cariocas, dominadas pela cultura ditatorial-evangélica das milícias). Assim como na África e no Brasil, na Índia, no Afeganistão, na Indonésia, a fórmula beat futurista somado à tradição, se repetirá. Uma lógica planetária, uma espécie de cultura global periférica se estabelecerá. Para nós brasileiros, por exemplo, o Kuduro pode vir a representar a feliz descoberta de que, embora alguns anseiem, desesperadamente, pelo nosso ingresso no clube dos brancos países desenvolvidos, fazemos parte sim - e disto muito devemos nos orgulhar- do universo paralelo da mais complexa, viva, diversificada e pujante Periferia. Como, facilmente, se pode notar, o mundo roda enquanto a cultura das periferias gira, circula, como um bambolê. Somos do Overmundo, o pá! O Bicho, o vírus da maçã. Y love you Angola ! (Em tempo: Em terra de cego, quem tem um olho, infelizmente é... caolho.)